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terça-feira, 17 de maio de 2011

Reprovação escolar? Não, obrigado.

Pouca coisa é tão cercada por equívocos, em nossa escola básica, quanto a questão da reprovação escolar, que se perpetua como um traço cultural autoritário e anti-educativo. Começa pela abordagem errônea de avaliação na qual se sustenta. Em toda prática humana, individual ou coletiva, a avaliação é um processo que acompanha o desenrolar de uma atividade, corrigindo-lhe os rumos e adequando os meios aos fins. Na escola brasileira isso não é considerado. Espera-se um ano inteiro para se perceber que tudo estava errado. Qualquer empresário que assim procedesse estaria falido no primeiro ano de atividade. E mais: em lugar de corrigir os erros, repete-se tudo novamente: a mesma escola, o mesmo aluno, o mesmo professor, os mesmos métodos, o mesmo conteúdo... É por isso que a realidade de nossa escola não é de repetentes, mas de multirrepetentes.
Absurdo semelhante ocorre quando se trata de identificar a origem do fracasso. A atividade pedagógica que se dá na escola supõe um quase infindável conjunto de atividades, de recursos, de decisões, de pessoas, de grupos e de instituições, que vão desde as políticas públicas, as medidas ministeriais, passando pelas secretarias de educação e órgãos intermediários, chegando à própria unidade escolar em que se supõem envolvidos o diretor, seus auxiliares, a secretaria, os professores, seu salário, suas condições de trabalho, o aluno, sua família, os demais funcionários, os coordenadores pedagógicos, o material didático disponível etc. etc. Mas, no momento de identificar a razão do não aprendizado, apenas um elemento é destacado: o aluno. Só ele é considerado culpado, porque só ele é diretamente punido com a reprovação. Como se tudo, absolutamente tudo, dependesse apenas dele, de seu esforço, de sua inteligência, de sua vontade. Para que, então, serve a escola?
Essa pergunta, aliás, vem bem a propósito da forma equivocada e anti-científica como se concebe o ensino tradicional ainda dominante entre nós. Apesar de a Didática ter reiteradamente demonstrado a completa ineficiência do prêmio e do castigo como motivações para o aprendizado significativo, ainda se lança mão generalizadamente da ameaça da reprovação como recurso pedagógico. Segundo esse hábito, revelador, no mínimo, da total ignorância dos fundamentos da ação educativa, à escola compete apenas passar informações, ameaçando o aluno com a reprovação caso ele não estude. Daí a grita de professores, pais e imprensa de modo geral contra a retirada da reprovação na adoção dos ciclos, afirmando que, livre da ameaça da reprovação, o aluno não se motiva para o estudo. Ignoram que a verdadeira motivação deve estar no próprio estudo que precisa ser prazeroso e desejado pelo aluno.
Nisso se resume o papel essencial da escola: levar o aluno a querer aprender. Este é um valor que não se adquire geneticamente; é preciso uma consistente relação pedagógica para apreendê-lo. Sem ele, o aluno só estuda para se ver livre do estudo, respondendo a testes e enganando a si, aos examinadores e à sociedade.
Mas defender a retirada da reprovação não significa apoiar “reformas” demagógicas de secretarias de educação com a finalidade de maquiar estatísticas. Essa prática, embora coíba o vício reprovador, nada mais acrescenta para a superação do mau ensino. Com isso, o aluno que, após reiteradas reprovações, abandonava a escola, logo nas primeiras séries, agora consegue chegar às séries finais do ensino, mas continua quase tão analfabeto quanto antes. A diferença é que agora ele passa a incomodar as pessoas, levando os mal informados a porem a culpa pelo mau ensino na progressão continuada. Mas o aluno deixa de aprender, não porque foi aprovado, mas porque o ensino é ruim, coisa que vem acontecendo desde muito antes de se adotar a progressão continuada. Apenas que, antes, esse mesmo aluno permanecia na primeira série, ou se evadia, tão ou mais analfabeto que agora. Mas aí era cômodo, porque ele deixava de constituir problema para o sistema de ensino. Agora, com a aprovação, percebe-se a reiterada incompetência da escola.
Só a consciência desse fato deveria bastar como motivo para se eliminar de vez a prática da reprovação no ensino básico: porque ela tem servido de álibi para a secular incompetência da escola que se exime da culpa que é dela e do sistema que a mantém. A reversão dessa situação exige que o elemento que estrutura a escola básica deixe de ser a reprovação para ser o aprendizado. É preciso reprovar, não os alunos, para encobrir o que há de errado no ensino e isentar o Estado de suas responsabilidades, mas as condições de trabalho, que provocam o mau ensino e impedem o alcance de um direito constitucional.

Vitor Henrique Paro é titular em Educação pela Usp. Foi professor titular nos cursos de graduação e pós-graduação em Educação da Puc-SP e pesquisador sênior da Fundação Carlos Chagas. Atualmente é professor titular no Departamento de Administração Escolar e Economia da Educação da Faculdade de Educação da Usp, onde exerce a docência e a pesquisa na graduação e na pós-graduação.

Um comentário:

  1. Posso discordar?

    Acredito que a reprovação seja necessária sim. A advertência, a repreensão e até a reprovação tem valor e utilidade para tudo e para todos inclusive na escola.
    Concordo plenamente que nossos critérios de avaliação em geral são falhos, estimulam o simples decorar dos conteúdos e imediato descarte assim que as avaliações terminam. Concordo que consultar um livro durante uma prova é um fato normal e faz parte do processo de adquirir conhecimento, afinal, na vida fora da escola, somos livres para consultar, avaliar, pesquisar e só depois definar qual atitude ou qual resposta fornecer.

    O argumento de esperar um ano inteiro para ver que tudo está errado, pode ser, também, visto como uma falha pedagógica, que não corrigiu ou não enxergou os problemas com o alunos nos tantos conselhos de classe e reunião de pais e pedagogos que ocorrem durante todo o ano.

    Toda essa equipe de trabalho citada falha e é inegável quando não corrige o desenvolvimento ineficaz do aluno. Mas também toda a equipe tem o dever de zelar pela justiça e coerência educacional.
    Um grande problema quando vejo os pedagogos, psicólogos, sociólogos e tantos outros estudiosos se manifestarem, só o fazem pela educação infantil, pela pré-escola. Mas sabemos que vamos muito além disso. Que a vida escolar e acadêmica atinge certo nível de consciência, onde o estudante é e deve ser responsabilizado por seus atos e por suas escolhas, cabendo, sem dúvida e reprovação.

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